A legislação que possibilitou aos trabalhadores domésticos o acesso a direitos até então restritos aos demais trabalhadores formais completou 10 anos. A PEC da Câmara foi tema de audiência pública da Comissão de Direitos Humanos nesta segunda-feira (17).
Na avaliação dos participantes da audiência, as dificuldades em aceitar as mudanças previstas na legislação decorrem da cultura escravista que ainda persiste no Brasil.
O presidente do Instituto Doméstica Legal, Mário Avelino, criticou os que dizem que a nova legislação a favor das empregadas domésticas teria resultado no aumento da informalidade. “Já foi dito que a informalidade aumentou. Na verdade, aumentou, mas não foi por causa da PEC 72 ou da Lei Complementar 150. Essas legislações são boas para o empregado e também para o empregador, porque lhe deram segurança jurídica”, afirmou.
Com dados da Previdência Social, Avelino disse que, em julho de 2015, cerca de 1,19 milhão de empregadores recolheram a contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) de seus empregados com carteira assinada. “Em dezembro de 2019, esse número aumentou para 1,58 milhão de empregadores [recolhendo o eSocial]. Ou seja, foram mais 390 mil”, afirmou.
E acrescenta que, mais recentemente, a informalidade aumentou. “Mas o grande vilão foi a crise econômica de 2016 e 2019, agravada pela pandemia de covid-19. Tanto que, só em 2020, o emprego doméstico perdeu 1,7 milhão de postos de trabalho, formais e informais”, argumentou.
Com a vacinação, segundo ele, já se identifica uma recuperação desses números. “Hoje há um déficit, em relação ao pré-pandemia de 2019, de 500 mil postos de trabalho. Mas repito, não foi a lei nem a PEC responsáveis por isso”, reafirmou o presidente do Instituto Doméstica Legal.
Avelino alertou para os casos de funcionários que têm medo de assinar carteira por medo de perder o direito ao Bolsa Família. “Falta uma política de esclarecimento de que isso não procede necessariamente, já que o programa considera a renda per capita da família”, afirmou.
Perfil
Segundo o Ministério Público do Trabalho Thiago Lopes de Castro, são muito comuns os casos de resgate de empregadas domésticas que vivem em situação análoga à escravidão. E apresentou um perfil das trabalhadoras domésticas. “Estamos falando de uma categoria que, segundo o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia Estatística]tem 6,2 milhões de trabalhadores, 92% mulheres e 65% negros”, afirmou.
“Entre as mulheres, geralmente são meninas levadas para serem criadas pela família, aos 8, 10 ou 12 anos. Muitos são evadidos da escola, ou seja, são vítimas da evasão escolar e sofrem prejuízos em sua formação”, disse ao associar, como uma das principais causas do trabalho escravo, a vulnerabilidade das vítimas.
Essas meninas, por deficiência escolar, “são submetidas a trabalhos análogos à escravidão, ao subemprego ou ao trabalho informal, além de longas jornadas de trabalho, maus-tratos, violência física e psicológica, assédio moral e sexual”, acrescentou.
No caso dos homens vítimas deste tipo de exploração, referiu que a maioria dos casos ocorre na zona rural, atingindo geralmente idosos ou pessoas com deficiência. “Em comum, entre mulheres e homens vítimas, o fato de não receberem remuneração ou remuneração mínima, sem condições mínimas de vida digna”.
“Há muitos casos de vítimas permanentes e vitalícias que tiveram suas vidas roubadas desde a infância. Torna-se a coisificação dos seres humanos, tratados como meros objetos daquela família, sem quaisquer direitos”, afirmou.
A auditora fiscal do trabalho e representante do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) Teresinha de Laisieux Rodrigues criticou a falta de apoio dado aos negros após a Lei Áurea, que acabou refletindo na opção, por parte da sociedade, de negar direitos como carteira de trabalho assinada, jornada de trabalho de 44 horas, horas extras, noturno ou FGTS, entre outros direitos.
“Precisamos, antes de tudo, educar a sociedade para respeitar esses direitos”, disse o auditor, lembrando também casos de trabalho análogo ao escravo, flagrados em vinícolas do Rio Grande do Sul. Segundo ela, de maneira geral, o que se observa é que “as empresas terceirizadas são as que mais utilizam trabalho em condições análogas à escravidão”.
Políticas públicas
Ainda de acordo com o auditor fiscal, o Brasil precisa criar políticas que visem resgatar as empregadas domésticas após uma vida de servidão à família que as criou. “Não temos uma política pós-resgate. É impossível o Estado brasileiro achar que basta retirar uma trabalhadora de uma família à qual foi entregue, abandoná-la e oferecer apenas três parcelas do seguro-desemprego. Isso é cruel”, disse ela.
“Não podemos tentar corrigir a violência com violência. Nós defendemos, e vamos enviar uma proposta de benefício continuado, para que esse trabalhador resgatado tenha um salário”, disse o representante do Sinait. A proposta recebeu apoio imediato dos parlamentares.
Thiago de Castro, do Ministério Público do Trabalho (MPT), destacou algumas medidas necessárias para mudar a situação das trabalhadoras domésticas no país. “O primeiro é o aumento das políticas públicas de combate ao trabalho infantil, em particular o trabalho infantil doméstico”, defendeu ao exigir, ainda, o reforço do corpo de auditores fiscais do trabalho.
“Precisamos também de políticas públicas de assistência integral às vítimas, oferecendo moradia, alimentação pós-resgate e assistência psicológica, já que essas vítimas sofrem grande dependência econômica e psicológica da família exploradora, e têm dificuldades para sair dessa situação”, acrescentou.
O procurador também defendeu assistência médica e odontológica; aconselhamento jurídico e educativo às vítimas, “para remediar o défice educativo sofrido”, bem como aconselhamento financeiro, porque muitos não têm a menor ideia de como gerir o seu próprio dinheiro.
“Nos tempos atuais, também é preciso assessoria para a inclusão digital”, acrescentou.
A representante do Sindicato das Empregadas Domésticas do Distrito Federal Samara Regina da Silva Nunes falou sobre as dificuldades, no Legislativo, para a aprovação da lei, há 10 anos.
“Se não tivéssemos persistido, ela não teria ido embora”, disse ele.
Samara também lembrou que membros do governo Jair Bolsonaro estavam entre os que se opunham à concessão de direitos às empregadas domésticas. “Houve até um discurso do ministro da Economia [Paulo Guedes], que achava um absurdo empregadas domésticas irem para a Disney. Sofremos muito porque sabíamos que havia algo ali querendo tirar nossos direitos conquistados”, disse ela.