Argumento pela prisão de Torres expõe conflito de Moraes com a jurisprudência

Ministro Alexandre de Moraes. Foto: Marcelo Camargo
A prisão do ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal Anderson Torres, mantida por Alexandre de Moraes, tem como um de seus argumentos o que o ministro do Supremo Tribunal Federal chama de resistência do investigado em entregar senhas de seu celular – que pode ser considerado um gesto de produção de provas contra si mesmo. A justificativa utilizada por Moraes é alvo de críticas de especialistas, que alertam que a prisão de Torres reflete contradições típicas do processo penal brasileiro.
Segundo decisão de Moraes, Torres forneceu as senhas de acesso aos e-mails “mais de cem dias após a ocorrência dos atos golpistas (na Praça dos Três Poderes, em Brasília) e com total possibilidade de suprimir as informações ali existentes” . Contra a decisão, os advogados do ex-secretário apresentaram um habeas corpus, distribuído ao ministro Luís Roberto Barroso
O pedido foi negado nesta sexta-feira, 28. “O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência consolidada, no sentido da inadequação do habeas corpus para impugnar ato de ministro, Turma ou Plenário do Tribunal”, argumentou Barroso. Ao mesmo tempo, Moraes deu prazo de 48 horas para Torres explicar a demora em fornecer suas senhas.
“O STF tem jurisprudência importante sobre a proibição de obrigar o réu a se incriminar. Portanto, esse ponto da decisão pareceu distanciar-se do tratamento da questão encontrado em outros processos”, disse Caio Paiva, professor e ex-defensor público federal.
Para ele, o caminho certo seria o Supremo conceder liberdade provisória ao ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (PL), com o uso de tornozeleira eletrônica, por exemplo. “É preciso ter cuidado para não fazer da prisão cautelar um mecanismo de antecipação da pena. Concordo com a Procuradoria-Geral da República na revogação da prisão preventiva e na aplicação de diversas medidas cautelares”, disse o ex-defensor.
Interpretação
O artigo 5º da Constituição, responsável por delimitar as garantias fundamentais, prevê que o preso tem o direito “ao silêncio”, cuja interpretação se estende à produção de provas que o incriminem. A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José, Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, também protege esse direito.
No STF, há dois acórdãos sobre o tema, relatados por Fux, aos quais foi atribuída repercussão geral – o que os torna vinculantes aos demais Tribunais do País. A maioria dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também é de proteção ao princípio, especialmente em casos envolvendo acidentes de trânsito.
Mauricio Dieter, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), disse que “o direito contra a autoincriminação também garante o direito de não facilitar a prova contra si mesmo”. Para ele, a análise de todos os crimes cometidos no dia 8 de janeiro é essencialmente política, porque “o bem jurídico lesado é o estado democrático de direito”.
O argumento usado por Moraes, de que Torres teria dificultado o acesso ao seu celular, é visto pelo coordenador do curso de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), Thiago Bottino, como um “desabafo”.
“As decisões judiciais não precisam ter esse tipo de comentário. Mas não é por isso que ele continua preso”, disse o professor, que é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “É um argumento frágil. Ninguém tem a obrigação de produzir prova contra si mesmo, o que é uma garantia constitucional.”
Bottino faz outra nota sobre o perfil do STF. “Historicamente, quando o STF é o órgão originário e decreta as medidas, ele tende a ser mais duro do que quando é o órgão revisor”, disse o professor.
Houve também uma mudança no perfil decisório do Tribunal em razão do grande volume de habeas corpus que chegaram até ele, destacou Dieter. “O Supremo Tribunal Federal não é mais um lugar para garantir liberdades em termos de processo penal.
Redes
Não é a primeira vez que, nos processos de 8 de janeiro, Moraes contradiz a PGR para preservar presídios. Manifestantes detidos no acampamento em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, foram mantidos em prisão preventiva sob a alegação de uso indevido de redes sociais – o que inclui vídeos já retirados do ar, filmagens de ônibus de turismo, notícias das cidades de origem do denunciados e uma live feita de dentro da Academia Nacional de Polícia, para onde foram levados todos os detidos.
“Não há violação da lei. Porque a legalidade definiu de forma muito elástica as condições da prisão preventiva. A lei processual penal tem julgamentos de admissibilidade que são genéricos”, disse Dieter sobre a prisão de Torres. “O quadro legal é bastante frouxo.”
Bottino, da FGV, afirmou que não há tratamento excepcional ou diferenciado na prisão do ex-secretário de Segurança Pública. “O fato de nossa legislação ter essa abertura faz com que haja um grande número de pessoas presas preventivamente.”
Segundo ele, a prisão preventiva é sempre “uma questão muito conjuntural”. Segundo Bottini, a preventiva “tem mais a ver com as condições do caso concreto do que com a gravidade do crime”.
A lei penal estabelece que, para a decretação da prisão preventiva, deve haver “prova da existência do crime, indícios suficientes da autoria e da periculosidade gerada pelo estado de liberdade do acusado”. A constatação da existência desses critérios fica a critério do magistrado.
A reportagem entrou em contato com o advogado Eumar Novacki, que, junto com Edson Smaniotto, representa Torres perante o STF. Novacki disse ao Estadão que se manifestará nos autos.
Procurado, o gabinete de Alexandre de Moraes afirmou que “o ministro não comenta processos em curso”.
Barroso também nega pedido
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), também rejeitou o pedido de liberdade do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. A defesa impetrou habeas corpus após o ministro Alexandre de Moraes negar a revogação da prisão preventiva por duas vezes.
Barroso baseou a decisão em questões processuais e não analisou o mérito dos argumentos da defesa. Ele afirmou que a jurisprudência do STF não autoriza habeas corpus contra decisões individuais de outros ministros. “Não resta outra alternativa senão arquivar o processo, sem resolução do mérito, por inadequação da via escolhida”, escreveu Barroso.
“Respeitamos a decisão do ministro Barroso. Diante do significativo agravamento do quadro clínico de Anderson Torres e das graves crises ocorridas na semana, a defesa entrará com recurso no prazo legal”, afirmou a defesa. (Por Isabella Alonso Panho, Rayssa Motta e Pepia Ortega | O Estado de S. Paulo.)