Concorrência com a rede privada e condições de trabalho afastam médicos residentes do SUS

O estudo ouviu 1.614 médicos residentes, com idade até 35 anos – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Permanecer trabalhando exclusivamente no SUS (Sistema Único de Saúde) após o período de residência médica não é o objetivo da maioria dos profissionais de saúde. A competitividade salarial com o mercado privado e as condições de trabalho encontradas no setor público são os principais fatores que afastam os médicos residentes do SUS.
Os dados constam da Demografia Médica 2023, estudo realizado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
“Menos de um quarto dos médicos [do país] trabalham exclusivamente no SUS, independentemente de serem especialistas ou não, ou de terem residência médica concluída. Se você pensar que cerca de 8% a 10% são médicos residentes, temos uma porcentagem muito pequena”, diz Mário Scheffer, professor da FMUSP, coordenador do estudo.
Segundo a pesquisa, 24,6% dos médicos residentes entrevistados, após um período de um ano de residência, afirmam trabalhar em tempo integral ou em tempo integral no SUS. Cinco anos depois, essa preferência cai para 12,1%.
O estudo ouviu 1.614 médicos residentes com idade até 35 anos. As entrevistas foram realizadas por telefone, com aplicação de questionário com 32 questões.
Segundo Scheffer, a residência médica é financiada principalmente pelos ministérios da Saúde ou da Educação ou pelos governos estaduais. Cerca de 17% da residência é financiada por instituições ou hospitais com recursos próprios.
“A formação especializada é toda realizada no SUS, o financiamento são bolsas públicas pagas pelo governo. Mas, depois de formados, esses médicos ingressam em um mercado de trabalho que não atenderá prioritariamente aos usuários do SUS”, afirma Scheffer.
Fernando Brito, 26 anos, concluiu residência em anestesiologia na Faculdade de Medicina do ABC, na região metropolitana de São Paulo.
Foi concluído em fevereiro deste ano. Um mês depois, ingressou como preceptor -ele faz o elo entre ensino teórico e prático- no Hospital das Clínicas e se especializou em anestesia pediátrica, também no HC.
“Optei por passar mais um ano me aperfeiçoando. A preceptoria é um processo administrativo no qual posso ajudar os próprios residentes de anestesiologia a terem uma melhor vivência na resolução de problemas, organização de horários e aulas. Então preferi, mesmo sendo formado e apto para trabalhar no mercado privado, aproveitar essa oportunidade para me aprimorar ainda mais.”
O médico entende que, principalmente nas disciplinas onde há procedimentos, como cirurgia, ou em alguma das clínicas, muitas vezes o recém-formado opta por ingressar na rede privada em busca de remuneração mais alta e mais condizente com a expectativa que essa pessoa tem.
“O salário importa, mas não é só isso. Se eu encontrasse no SUS as mesmas qualidades que encontro no particular, para mim não haveria problema em permanecer no SUS. O salário é justo, mas obviamente poderia melhorar, para igualar ao salário privado”, diz Brito.
“Mas também há condições de trabalho. Muitas vezes, os materiais, insumos, encontrados na rede privada são de melhor qualidade. A administração, as equipas de gestão estão mais qualificadas.”
Para Adriano Massuda, médico sanitarista e professor da FGV, um dos principais pontos que dificultam uma carreira atraente para os médicos da rede pública é a diferença entre as especialidades.
“Tem que olhar especialidade por especialidade. Algumas são muito pró-mercado, enquanto outras são pró-sistema público, como medicina de família, medicina preventiva e social, infectologia, áreas que têm um campo de atuação maior no sistema público”, diz o médico, que foi secretário-executivo adjunto no Ministério da Saúde (2011 e 2012).
Massuda aponta ainda que o setor privado já demonstrou interesse por essas áreas predominantes do serviço público. “Por exemplo, a medicina de família e comunidade, quem buscava, em geral, eram aqueles que já estavam mais aptos para trabalhar no SUS. Nos últimos anos, o setor privado percebeu a importância do trabalho do médico de família e começou a contratar profissionais para esta especialidade.”
A Demografia Médica também aponta para um grande desequilíbrio na distribuição de médicos residentes pelo país. A maior concentração está na região Sudeste, com 56%. Em seguida vem o Sul (16%), Nordeste (17%) e Centro-Oeste (8%). A maior lacuna está na região Norte, que tem apenas 4% dos moradores. Os estados de Roraima e Amapá, por exemplo, somam menos de cem habitantes.
“Os ministérios da Saúde e da Educação precisam trabalhar de forma mais coordenada para ampliar o número de programas de residência em regiões onde há grande carência e carência de capacitação”, diz Massuda.
“Para fazer um programa de residência, você tem que ter um serviço. Isso também está incluído como política de investimento em infraestrutura, que não é apenas física. Tem que fazer parte de um projeto de desenvolvimento do sistema nacional de saúde em que a formação de mão de obra qualificada é fundamental para enfrentar os problemas de saúde da atenção básica na atenção especializada”, diz o médico.
Para Renata Vilhena, professora associada da área de gestão pública da Fundação Dom Cabral e presidente do República.org, alguns aspectos precisam ser mudados para que as carreiras se tornem mais atrativas e atraiam profissionais mais alinhados com o serviço público, reduzindo evasão.
“Às vezes se investe tanto tempo na formação de um profissional e logo ele sai. Aí tem que fazer novo concurso, aí tem rotatividade, e isso traz um prejuízo enorme para a prestação do serviço público”, diz o professor.
“Tem que ter coragem de olhar o todo e criar uma visão de futuro, onde quer ir para a ascensão profissional, onde é possível agora, onde é possível daqui a alguns anos. O que não pode é ficar assim.”
EMERSON VICENTE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)