No vai e vem com o Congresso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai passar a repassar bilhões de reais do caixa federal para aumentar a base de apoio, sem nenhuma transparência. O Palácio do Planalto desenvolveu um modelo de negociação que mantém em segredo o nome dos parlamentares que definirão para onde vão os recursos públicos que estão sob o controle dos ministérios, retomando uma prática amplamente adotada no orçamento secreto pelo orçamento secreto do ex-presidente Jair Bolsonaro .
No início do mês, três ministros do governo assinaram portaria para definir como funcionará o processo de pagamento das emendas parlamentares – recursos indicados por deputados e senadores para suas bases eleitorais e repassados pelo Executivo em troca de apoio político no Legislativo.
O documento não estabelece nenhuma medida para tornar público quem serão os parlamentares atendidos pelos recursos controlados pelo governo. Além disso, Lula vetou proposta que identificava parte dos recursos de maior interesse dos parlamentares e permitia um nível de monitoramento dos repasses
Parte do valor é espólio do orçamento sigiloso, derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Inclui também outros valores incluídos pelos parlamentares no Orçamento de 2023. No total, Lula terá até R$ 100 bilhões para negociar, dos quais R$ 16 bilhões foram incluídos na peça orçamentária a pedido de representantes do Centrão, que pressionam Lula a liberar o dinheiro.
São recursos para financiar, por exemplo, pavimentação de ruas, construção de rodovias, compra de tratores e manutenção de postos de saúde. Conforme revelou o Estadão, durante a operação do orçamento secreto, parlamentares escolhidos a dedo pelo governo Bolsonaro promoveram compras com indícios de superfaturamento, miraram contratações de empresas de amigos e parentes de políticos e concentração de recursos em redutos do Centrão. Em dezembro, a Suprema Corte declarou o orçamento secreto inconstitucional.
Portaria
Parte da premissa do orçamento secreto foi retomada na portaria assinada pelos ministros Simone Tebet (Planejamento), Esther Dweck (Gestão) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais). O documento deu a Padilha o poder de centralizar a negociação com o Congresso de verbas controladas diretamente pelo Executivo, sem a necessidade de equidade na divisão de recursos ou transparência na indicação.
A origem dos recursos é o dinheiro que alimentou o esquema de Bolsonaro, mas que havia sido transferido para outra linha orçamentária, chamada RP2 – antes era RP9.
Com Bolsonaro, a negociação sobre quem teria acesso ao dinheiro ficou exclusivamente nas mãos de um grupo de parlamentares, incluindo o prefeito Arthur Lira (PP-AL). Agora, a decisão terá que passar pela pasta de Padilha. O que não significa que Lira perdeu força. Como ele comanda a agenda da Câmara e do Centrão, as negociações passarão necessariamente por ele.
O Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, por exemplo, tem R$ 2 bilhões para obras, que vão desde a compra de tratores até a pavimentação de ruas. Os parlamentares escolhidos pelo governo Lula poderão dizer em qual cidade aplicarão os recursos como “pagamento” por votarem a favor do governo. Também foram destinados R$ 54 milhões para o abastecimento de água no sertão alagoano, reduto de Lira.
A procuradora Élida Graziane, do Ministério Público das Contas de São Paulo, disse que a portaria do governo Lula restaura o orçamento secreto.
‘Continuidade’
“Não vejo mudança de um modelo para outro, vejo continuidade, com um regime híbrido para contrariar a decisão do STF e manter tudo exatamente igual”, disse o procurador. “Há uma tendência muito forte da execução repetir o que era o orçamento secreto, que é liberar dinheiro sem adesão ao planejamento, de forma discriminatória, sem transparência em relação aos beneficiários e escolhendo o beneficiário sem nenhum filtro”.
O Supremo declarou inconstitucional o orçamento secreto por se tratar de um esquema sem transparência, sem planejamento, que concentrava recursos em redutos eleitorais sem equilíbrio regional e envolvia desvios. Lula criticou o mecanismo durante a campanha eleitoral, classificando o modelo como uma “excrescência”.
Em resposta ao Estadão, a assessoria de Padilha afirmou que a destinação de recursos para a rubrica RP2 segue uma decisão do Congresso “de acordo com o padrão da Lei Orçamentária aprovada há muitos anos”. O governo prometeu dar transparência aos atos, mas, questionado pela reportagem, não indicou onde o cidadão poderia consultar os nomes dos parlamentares beneficiados pelos recursos.
“Até o momento, não houve comprometimento de qualquer valor neste item. Futuramente, quando utilizados, esses recursos obedecerão a critérios técnicos e seguirão absolutamente todos os padrões de transparência da administração pública, no que diz respeito aos proponentes, aos órgãos federais envolvidos e ao ritmo de execução e liberação dos recursos”, destacou Padilha.
O Planejamento, comandado por Tebet, disse que os ministérios não são obrigados a acompanhar a indicação de parlamentares para os recursos do RP2.
Questionado sobre como será dada a transparência e como garantir que a negociação não repita o orçamento sigiloso, a pasta respondeu: “As dotações classificadas como RP2, decorrentes ou não de emendas, são executadas pelos órgãos sem a obrigatoriedade de observar indicações parlamentares, cabendo ao órgão gerir a execução da despesa”.
Veto
Outra medida que reduz a transparência foi a decisão de Lula de vetar uma proposta da Lei Orçamentária Anual (LOA) que separava em fonte específica os recursos autorizados pelo Congresso após a aprovação da PEC de Transição. Na prática, a medida colocou uma “impressão digital” nos recursos e permitiu um mínimo de monitoramento do caminho do repasse.
Agora, a gestão do PT misturou os cronogramas com outras despesas que estão sob o controle do Palácio do Planalto, impossibilitando identificar o que é recurso direto do governo e o que é liberado para atender o interesse dos aliados. O Executivo argumentou que o “digital” colocado pelo Congresso não cumpriu o objetivo de identificar tecnicamente a origem do recurso para cobrir as despesas.
Para entender: a distribuição de verbas para parlamentares
governo Bolsonaro
– Recursos orçamentários secretos foram carimbados como emenda do relator geral (RP9) e liberados pelos ministérios a pedido de parlamentares aliados
– Quem definiu os beneficiários e a divisão interna foi a cúpula do Congresso, com maior controle do prefeito, Arthur Lira (PP-AL)
– Os nomes dos parlamentares contemplados foram mantidos em sigilo, assim como os critérios de distribuição dos recursos
– Em 3 anos, o governo Bolsonaro liberou R$ 45 bilhões do orçamento secreto para atender aliados em troca de apoio político no Congresso
governo lula
– O Executivo define o pagamento da maior parte dos recursos para investimentos e manutenção dos órgãos públicos, com o cunho das despesas discricionárias (RP2)
– Foi criado um modelo de repasse orçamentário, concentrando a negociação no gabinete do ministro Alexandre Padilha, que receberá as indicações dos parlamentares
– Governo não é obrigado a auxiliar parlamentares na hora de destinar os recursos, mas é pressionado a liberar por indicação de deputados e senadores
– Não há instrumento para tornar essas indicações transparentes
– Lula terá R$ 100 bilhões para gastar à vontade e servir aliados, incluindo espólios orçamentários secretos, recursos negociados na PEC de Transição e dinheiro para recém-chegados
Por Daniel Weterman e Felipe Frazão – Estadão