Juristas defendem acesso de família a provas no caso Marielle

Dois juristas ouvidos pela Agência Brasil consideraram a decisão judicial positiva para que familiares de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes tenham acesso ao inquérito policial que investiga o mandante do duplo homicídio, ocorrido em 2018. Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu permitir o acesso da família às provas já obtidas e documentadas no inquérito, revertendo decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que impedia esse acesso.
As famílias entraram com um pedido de acesso às provas da investigação, que foi declarada confidencial, sob a alegação de que a investigação era lenta.
Os Ministros do STJ consideraram que a Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal (STF) é aplicável aos familiares das vítimas, segundo a qual é direito do defensor, no interesse do réu, ter amplo acesso às provas já documentadas no procedimento investigativo.
Maíra Fernandes, advogada criminalista e professora convidada da Fundação Getulio Vargas (FGV), acredita que os familiares das vítimas têm “todo o direito de acompanhar as investigações”.
“As autoridades geralmente consideram esse acompanhamento saudável [da família das vítimas], o que não prejudica as investigações, pelo contrário. Em geral, contribui para a elucidação dos fatos. Lembro-me de vários casos em que acompanhei a investigação como advogado da vítima ou de familiares de vítimas de vários crimes e não houve necessidade de decisão judicial para o fazer. Fiz um pedido de acesso ao inquérito, demonstrando que era advogado da vítima ou de sua família, e o acesso foi concedido sem questionamentos”, destaca Fernandes.
Segundo ela, a decretação do sigilo das investigações não deve ser motivo para restringir o acesso da família ao que está sendo investigado.
“O acesso deve ser permitido mesmo nos casos em que for declarado sigilo, que será estendido aos advogados dos familiares da vítima. Assim, da mesma forma que os advogados dos investigados, policiais, membros do Ministério Público que tiverem acesso aos autos, os advogados dos familiares das vítimas também devem manter sigilo sobre todas as informações contidas nos autos”, diz o Professor da FGV.
Para o juiz de direito e professor de processo penal da Universidade Federal Fluminense (UFF), André Nicolitt, não faria sentido negar às famílias de Marielle e Anderson o acesso às informações da investigação, já que a intenção dessas pessoas é colaborar e para não prejudicar as investigações. “E também não teria o condão de expor o suspeito, porque, ao que tudo indica, ainda não há informações sobre essa autoria em relação aos mandantes do crime.”
Nicolitt, autor do livro Manual de Processo Penal, destacou que o STJ não considerou apenas a Súmula Vinculante 14 para sua decisão, mas também importantes documentos internacionais, como o Protocolo de Minnesota.
“É importante que as investigações que violem os direitos humanos sejam realizadas de forma transparente e eficiente. O Estado brasileiro tem todo interesse nisso”, diz Nicolitt. “A decisão do STJ certamente vai reforçar esse pensamento no meio jurídico brasileiro. Isso já está sendo construído e, com essa decisão, em um caso dessa relevância, representa um precedente importante para orientar futuras demandas nesse sentido.”
Durante o julgamento da questão, o procurador Eduardo Morais Martins, do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), se posicionou contra o acesso por considerar que os familiares das vítimas só poderiam atuar na fase processual (ou seja, após processo chegue à Justiça) e não na fase de inquérito policial.
Segundo o procurador, a participação das vítimas (e familiares) não é a mesma coisa que o acesso aos autos. “A publicidade é a regra de acesso ao processo. Na investigação, o sigilo é muito importante, muitas vezes.”
Em sua defesa oral contra o acesso à informação, Martins disse temer que a decisão do STJ abrisse precedentes para outras situações. “O que está decidido aqui não está sendo decidido apenas para Marielle e Anderson. Está sendo decidido para todas as investigações em todo o Brasil. Estaremos dizendo que todas as vítimas em todo o Brasil podem ter acesso aos dados sigilosos da investigação”, afirmou. “Isso aumenta consideravelmente o risco, em cada um desses casos, de vazamento de informações, de quebra de sigilo de informações importantes para o investigado. Às vezes, as pessoas são investigadas e não cometeram o crime.”
Para Maíra Fernandes, a determinação do STJ não vai gerar uma “repercussão geral”, em que a decisão judicial seja automaticamente vinculada a casos semelhantes. “Mas é claro que é uma decisão importante que pode abrir precedentes para outros casos”, prevê.