Geraldo Ferreira – Médico, Presidente do Sinmed RN. Foto: Divulgação
Hobbes defendeu a doutrina de que o estado de natureza é um estado de guerra. Algo motivaria nosso aplauso ou indignação ao pensar em nosso lucro ou sofrimento. Adam Smith, em The Theory of Moral Sentiments, diz que “uma grande ambição, um desejo de verdadeira superioridade, de guiar, de dirigir, parece ser inteiramente peculiar ao homem”. Como não temos experiência imediata do que as outras pessoas sentem, só podemos formar uma ideia de como elas são afetadas imaginando o que nós mesmos sentiríamos em uma situação semelhante. Daí nasce a empatia. Sua quase ausência é característica do narcisismo.
“Cada era desenvolve suas próprias formas peculiares de patologia, que superexpressam sua estrutura de personalidade subjacente”, escreve Christpher Lash em The Culture of Narcissism. Novas formas sociais desenvolvem novos tipos de personalidade, novas formas de socializar e organizar a experiência. A busca de interesses pessoais na forma de ganho e riqueza tornou-se a busca de prazer e sobrevivência física. O grande profeta do individualismo revolucionário, o Marquês de Sade, defendia a aceitação ilimitada dos prazeres, numa utopia sexual em que todos têm direitos sobre todos. Escreve Lash “No estado resultante de anarquia organizada, o prazer, como Sade foi o primeiro a perceber, torna-se a única preocupação da vida.” A razão não é mais capaz de impor limites à busca do prazer e à satisfação dos desejos. O narcisismo é um mergulho no privatismo, em busca de uma ética de autopreservação, de sobrevivência diante de um mundo inclemente. A devastação da vida pessoal no mundo moderno levou à conclusão de que, se os relacionamentos pessoais estão tensos, é melhor não investir muito no amor e na amizade para evitar a dependência dos outros. Mas são essas as condições básicas responsáveis pelo agravamento da crise que afeta as relações pessoais. Lash registra: “viver o momento é a paixão predominante, viver para si mesmo e não para seus predecessores ou para a posteridade” então se perde a noção de continuidade histórica, a noção de que vidas estão ligadas em uma sucessão de gerações que se origina no passado e continuidade no futuro. Há no narcisista, que se alimenta da ideia de superioridade, mania de grandeza, atenção e admiração dos outros, um desespero devastador com a ideia de decadência. Para Kernberg, “numa sociedade apavorada com a velhice e a morte, o envelhecer reserva um terror especial para aqueles que temem depender dos outros e cuja manutenção da auto-estima exige a admiração normalmente dada à beleza, juventude, celebridade ou charme. ” Sua insegurança e falta de empatia levam você à manipulação, quando não está oprimindo, culpando os outros ou se fazendo de vítima. O narcisista sofre por falta de identificação com valores éticos ou artísticos que vão além dos interesses imediatos, da curiosidade intelectual, do conforto emocional de relacionamentos felizes do passado. Sem o conforto da identificação com a continuidade histórica, o narcisista vê que uma geração mais jovem agora possui as fontes de gratificação que ele valorizava, beleza, riqueza, poder e criatividade. Apesar de demonstrar confiança e autoestima elevada, o narcisista não suporta reprimendas ou críticas. Duvidando de si mesmo, ele se afunda no sofrimento, procurando uma maneira de ser validado. Warhol confessa “Estou obcecado com a ideia de me olhar no espelho e não encontrar ninguém, nada”. Christopher Lash avalia “todos nós, atores e espectadores, vivemos rodeados de espelhos, nos quais procuramos reforçar a nossa capacidade de cativar e impressionar os outros”. A vida moral depende de três pilares: “valor, virtude e dever”, escreve Roger Scruton. A moralidade e a autoconsciência nos colocam em um estado de julgamento sobre nós mesmos. Antigamente, a boa estima era elevada pela valorização dos feitos, hoje busca-se exaltar pelos atributos pessoais, o desejo ardente é ser admirado, não estimado, “o que importa é a fama, o glamour e a empolgação da celebridade”. O sucesso era a soma de riqueza, fama e poder, hoje o sucesso mundano é em grande parte uma função da juventude, glamour e novidade. A glória agora é mais efêmera do que nunca, e todo sucesso tem que ser ratificado pelo público, todo mundo tem que ficar à vista, toda forma de atuação virou espetáculo. Daniel Boorstin aponta que “as pessoas falam o tempo todo, não sobre as coisas em si, mas sobre suas imagens”. A exibição de imagens vitoriosas, onde o reconhecimento e o aplauso são mais importantes do que as próprias conquistas, mostra que a forma como as pessoas se veem se torna a imagem que os outros têm delas. O indivíduo começa a sentir nada mais do que a imagem refletida nos olhos dos outros. A presença dessa informação simbolicamente mediada gera descrença na realidade de um mundo externo. Apenas o eu atuante passa a existir, tentando moldar um papel para si, buscando reforçar a capacidade de cativar e impressionar os outros. Tom Wolfe e outros chamaram a década de 1970 de “a década do eu”. Desde então, o narcisismo se acentuou, com quebra no controle dos impulsos, declínio do autocontrole e dependência da opinião alheia. Em seu livro Guia de Sobrevivência para Vítimas de Narcisistas Malignos, o Dr. Kurt Mendoença, neurocirurgião e especialista em Direito Processual Civil, após descrever o modus operandi do abuso psicoemocional ou mesmo físico, cita regras para se libertar de agressores narcísicos: libertar-se de culpa, fechando todo contato, não respondendo a provocações e começando uma nova vida. “Não fique olhando para o passado, lamentando-se, cuide do presente, preparando o futuro que é o minuto que começa agora.” E aplausos: “Ressuscite dos mortos e seja bem-vindo de volta à vida”.