Poucas horas antes da conclusão do julgamento sobre o recebimento das primeiras cem denúncias pelos atos golpistas de 8 de janeiro, o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, levantou ‘dilemas’ envolvendo o processo, argumentando que uma ‘reflexão desapaixonada ‘ é necessário sobre aspectos do caso. O placar do julgamento é de 8 a 0 para tornar os réus acusados de participar da ofensiva antidemocrática. Mendonça ainda não deu seu voto no plenário virtual, assim como o ministro Kassio Nunes Marques. Têm até às 23h59 desta segunda-feira, dia 24, para o fazer.
Segundo Mendonça, é “muito mais simples definir a situação fática” dos investigados que foram presos em flagrante durante os atos que deixaram um rastro de destruição na Praça dos Três Poderes, não sendo “necessariamente possível” fazer a o mesmo em relação aos outros 50 denunciados, identificados como instigadores dos atos e detidos no acampamento montado em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília.
Nesse sentido, o ministro destacou que há questões ‘fundamentais para ele’, a começar pelo fato de o STF ter um histórico de defesa de garantias em relação ao processo (direito de defesa, princípio do juiz natural). “Não necessariamente agora no âmbito da denúncia, mas em algum momento do julgamento dos processos, se eu aplicar essa corrente mais garantidora ou se eu entrar em um aspecto que é concebido, teoricamente, como o direito penal do inimigo. É um dilema porque serei obrigado a aplicar a justiça. Quais contornos irão definir.”
Mendonça também destacou um segundo ponto: a interpretação restritiva de foro por prerrogativa de função no STF. Ele lembrou que só é julgado no Supremo Tribunal quem comete crimes como parlamentares federais, nos casos em que a conduta esteja ligada ao exercício do mandato. “E nenhuma dessas 100 pessoas está nessas circunstâncias. Isso para mim é um ponto que merece uma reflexão não apaixonada”, observou.
As considerações foram feitas durante palestra durante almoço promovido pelo Instituto dos Advogados de São Paulo. A fala de Mendonça teve como tema as impugnações do Supremo Tribunal Federal em 2023. Ele disse que não defende nem uma ‘aplicação literal da lei’, nem uma ‘interpretação independente da lei’, mas uma interpretação seguindo os valores que estão expressos na Constituição.
“É por isso que eu digo, eles não são meus valores. Porque eu acho que, no Estado de Direito, o que fica é a verdade que está expressa no texto que está na Constituição. Veja as panorâmicas. E se eu abrir uma exceção hoje, como posso fazer no futuro, para outros casos? Assim, tenho aqui dois grandes dilemas: o do juiz natural e quais os contornos que darei na interpretação das condutas face ao quadro positivizado dos crimes – a questão do dolo da culpabilidade, os limites da liberdade de expressão”, prosseguiu no acórdão vinculado aos atos golpistas de 8 de janeiro.
No início de sua apresentação, Mendonça ponderou que, em sua avaliação, um dos grandes desafios do Tribunal é ‘estar atento às limitações que o texto legal dá, mas ter uma atitude autocontida, diferente da de um ativista’. “A justiça deve ser aplicada, mas a justiça baseada na lei. O prisma da interpretação são os princípios e valores, mas o objeto da interpretação tem que ser a lei. Porque a lei, boa ou má, foi a resposta que a sociedade conseguiu dar, neste momento histórico, de consenso”, observou.
“O papel que desempenho é um papel que exige de mim limites. E quais são os limites? O primeiro é o texto da Constituição. Tenho que privilegiar a norma estabelecida, mas não sou escravo da injustiça nem das convenções que estão na norma. Além disso, quando eu, como aplicador da lei, quero fazer prevalecer minha compreensão do mundo, tendo a gerar tensões no meio social. Precisamos dar respostas muitas vezes difíceis e complexas, mas também há uma divisão de poderes, instituições e diferentes papéis a serem desempenhados na sociedade. A democracia pressupõe isso”, frisou.
Por Pepita Ortega – Estadão