Portaria que regulamenta redes sociais não foge da lei, diz ministério

A portaria prevê que a Senacon instaure um processo administrativo para apurar e responsabilizar as plataformas diante da veiculação de conteúdos que estimulem atentados contra o ambiente escolar ou que apoiem e incitem esses crimes e seus autores – o: Fernando Frazão/Agência Brasil
Diante dos recentes ataques a escolas e do medo gerado por ameaças em perfis de redes sociais, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) publicou uma portaria que busca dar mais controle aos conteúdos veiculados por essas plataformas.
A norma, assinada pelo ministro Flávio Dino, atribui à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e à Secretaria de Segurança Pública (Senasp) a tarefa de atuar em meio à disseminação de conteúdos ilícitos, lesivos ou lesivos nas redes sociais.
A portaria prevê que a Senacon instaure um processo administrativo para apurar e responsabilizar as plataformas diante da veiculação de conteúdos que estimulem ataques ao ambiente escolar ou que façam apologia e incitação a esses crimes e seus autores.
A Senasp, por outro lado, deve orientar as plataformas para impedir a criação de novos perfis a partir de endereços de protocolo de internet (endereço IP) em que já tenham sido detectadas atividades ilegais, lesivas e perigosas relacionadas a conteúdo extremista violento.
Sobre o assunto, a Agência Brasil entrevistou a coordenadora de Direito Digital do ministério, Estela Aranha, que participou da elaboração da portaria. O advogado comentou possíveis embates entre a norma e o Marco Civil da Internet; mediação de conteúdo por plataformas privadas e risco de censura; até onde deve ir a vigilância geral de seus usuários pelas plataformas; e como o Ministério da Justiça estava legalmente obrigado a emitir a norma.
Confira os principais trechos da entrevista:
Agência Brasil: O debate sobre a responsabilidade das redes sociais na divulgação de conteúdos extremistas ganhou força após recentes atos de violência nas escolas. Que entendimento jurídico temos hoje da questão?
Estela da Aranha: Houve uma discussão que afirmava que as plataformas não seriam responsáveis pelo conteúdo postado por terceiros. Essa foi uma leitura tradicional do Marco Civil da Internet. Hoje já se avançou muito nessa discussão e vemos que a interpretação não deve ser literal. Deve ser constitucional e sistemático com a nossa legislação. O feed de notícias de cada plataforma funciona de acordo com o que ela entrega. É ela quem decide o que será exibido. Ela impulsiona conteúdo, pode recomendar conteúdo. Há toda uma seleção.
A relação entre os usuários e a plataforma é uma relação de consumo. Portanto, ela tem responsabilidade, não por cada conteúdo específico, mas por manter seguro o ambiente geral do usuário. Ainda mais em relação aos mais vulneráveis, que são crianças e adolescentes, que têm prioridade nesse tratamento pela Constituição.
Agência Brasil: Quais são os principais pontos da portaria publicada pelo ministério e que prevê medidas administrativas para coibir a divulgação de conteúdos ilícitos e nocivos nas redes sociais?
Estela da Aranha: Primeiro, a possibilidade da Senacon, dentro da estrita legalidade e do Código de Defesa do Consumidor, realizar essa investigação sobre a questão da segurança na prestação dos serviços. O serviço tem que ser seguro. Ela fará essa avaliação global. Caso os serviços não sejam seguros para o consumidor, pode haver algumas sanções do órgão de defesa do consumidor.
Em todas as relações obrigatórias das plataformas, existe um contrato. Mesmo que seja uma adesão, é um contrato. E todos os contratos têm o preceito da boa-fé. Disso decorre um dever de cuidado para que as partes não sofram perdas ou danos quando estiverem utilizando o serviço objeto do contrato. Assim, as plataformas têm o dever de prevenir um ambiente com conteúdos nocivos e nocivos em geral para o usuário. Trazemos essa obrigatoriedade e alguns mecanismos de como ela será avaliada.
Agência Brasil: O Marco Civil da Internet prevê que a retirada de qualquer conteúdo das redes sociais requer amparo judicial. A portaria do ministério, de alguma forma, colide com a legislação que temos atualmente?
Estela Aranha: O marco cível não proíbe a retirada de conteúdo sem decisão judicial, diz que as plataformas serão responsabilizadas caso não cumpram as decisões judiciais. Mas não proíbe nenhum tipo de moderação. Pode ser feito. Com essa interpretação sistemática da legislação, da Constituição, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código de Defesa do Consumidor, estamos mostrando que existe o desejo de manter esse ambiente de forma segura para que as pessoas possam utilizar a internet , e que as plataformas têm o dever de moderar.
Agência Brasil: As normas previstas na portaria não colocariam o poder de mediação de conteúdo nas mãos de plataformas privadas, abrindo caminho para uma possível censura?
Estela da Aranha: Hoje, as plataformas moderam o conteúdo de acordo com seus interesses, sejam seus termos de uso, seus interesses privados ou comerciais ou seus valores. A mediação está totalmente nas mãos das plataformas. O que queremos? A gente colocou esse debate dentro da nossa portaria, essa questão de fiscalizar a Senacom.
Agência Brasil: A portaria também determina que os usuários que estiverem postando conteúdo extremista sejam identificados imediatamente. Isso poderia abrir precedentes em termos de vigilância geral de seus usuários pelas plataformas?
Estela da Aranha: Não. Já temos monitoramento de conteúdo ilícito por parte das autoridades policiais. Nós não abrimos, vamos nos termos da lei que já existe hoje, o Marco Civil da Internet, que permite à autoridade policial, quando houver uma atividade ilegal dentro de suas atribuições previstas em lei, solicitar esses dados para investigação.
Obviamente, para estarmos seguros, precisamos de segurança pública. Então, não aumentamos nem mudamos nada que existe hoje na legislação sobre acesso a dados. Estamos apenas nos organizando para que esse processo seja mais rápido e uniforme em todas as delegacias do Brasil para que possamos tomar medidas mais rápidas.
Agência Brasil: A portaria prevê que, caso as plataformas não colaborem na remoção de conteúdos extremistas, as empresas serão acionadas. Como o ministério se propôs a elaborar essas medidas do ponto de vista jurídico?
Estela da Aranha: Nossos parâmetros são a legislação existente: o Código de Defesa do Consumidor, que tem um processo administrativo já muito bem estabelecido e sanções. Nada será feito fora do devido processo legal e da legislação pertinente. Não extrapolamos nenhuma lei existente em nosso ordenamento jurídico. Dentro desses poderes que as leis já dão aos nossos corpos, estamos trabalhando com o que temos. Assim, dentro das atribuições legais da Senacon, os processos cabíveis no âmbito do consumidor e as sanções que já existem no Código de Defesa do Consumidor.
Agência Brasil: Quantos perfis o ministério já identificou até o momento em que há um pedido de desculpas por violência ou algum tipo de ameaça?
Estela da Aranha: Existem algumas centenas. Por se tratarem de dados de operações em andamento, não podemos divulgá-los para não prejudicar as operações. Mas há muitos perfis. Eles estão sendo removidos e outros estão sendo monitorados. Os dados para investigação estão sendo processados pelas polícias civis dos estados.