O Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGISP) formalizou no dia 2, por meio de publicação no Diário Oficial da União (DOU), a autorização para a Fundação Nacional do Índio (Funai) realizar concurso público, no prazo o prazo de seis meses. Devem ser oferecidas 502 vagas e, embora o montante pareça significativo, é considerado insuficiente para compor o quadro de funcionários.
Quem faz essa avaliação são os servidores da autarquia, que exercem funções acima do normal, no dia a dia, devido às condições de trabalho que enfrentam. A promessa, em anos anteriores, era que o desfalque de pessoal não seria mais um problema.
A Lei nº 11.907/2009 previu a criação de 3.100 cargos para a Funai. Porém, o que aconteceu foram dois concursos, um em 2010 e outro em 2016, que abriram 967 vagas.
Segundo relatório do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal do Distrito Federal (Sindisep-DF), a que a Agência Brasil teve acesso e que foi apresentado à equipe de transição do governo federal, a autarquia conta atualmente com cerca de 1, 3 mil servidores.
Ao todo, 957 servidores (73,6%) do quadro têm idade igual ou superior a 41 anos, fato que por si só já demonstraria que a autarquia deve planejar a entrada de novos servidores. Além disso, 315 (24,2%) servidores estão prestes a se aposentar, enquanto 292 deles (22,4%) já teriam direito à aposentadoria, mas optaram por permanecer na ativa, em troca do abono permanente.
Uma das funções essenciais da Funai que justifica sua existência é a demarcação e homologação das terras indígenas. São 480 reivindicações de demarcação que ainda não foram, segundo o relatório, “nem mesmo instruídas a iniciar o processo formal de reconhecimento”, que depende da formação de um grupo técnico para avançar nos estudos.
“Além de 480 reivindicações, a Funai possui 134 processos de identificação e delimitação em andamento, 16 processos com terras indígenas já delimitadas que requerem análise de contraditório administrativo, 33 decisões judiciais (com foco no universo das reivindicações) para a composição de Grupos Técnicos (GTs) de identificação e delimitação, 58 decisões judiciais (enfocando o universo dos processos em andamento) determinando a conclusão dos estudos de identificação e delimitação e 12 processos em andamento com decisão determinando a conclusão da demanda de recomposição da GT. Nas decisões judiciais há, praticamente em sua totalidade, a incidência de multas causadoras de prejuízo ao erário”, continuam os servidores no documento.
Este volume de trabalho está a cargo de 12 funcionários, mais quatro coordenadores, na Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação (CGID), juntamente com outros cinco técnicos que acompanham o desenvolvimento dos processos que estão em fase de estudo, incluindo os que requerem a formação de GTs. Sobre o que vive o CGID, especificamente, a dirigente do Sindsep-DF, Mônica Machado Carneiro, é direta: “Tem índios que estão esperando lá há 20 anos a constituição de um GT”.
Há outras áreas da Funai com ainda menos chance de superar as demandas que surgem. No início de abril deste ano, o Serviço de Licenciamento Simplificado (Selis) tinha 1.826 processos em fila para análise e nenhum servidor funcionando, com exceção de um chefe do setor.
A Coordenação do Componente Indígena de Transporte e Mineração (Cotram), por sua vez, tinha 1.256 processos aguardando dois técnicos. A Coordenação do Componente Indígena de Petróleo, Energia e Gás (Coep), que também integra o rol de áreas que tratam de empreendimentos que impactam terras indígenas, a relação, no mês passado, era de 313 processos por técnico, e há um equipe de três funcionários lotados lá. O que resulta disso é que muitos processos nem são atribuídos a ninguém, ficando no estágio zero.
Em comparação, o sindicato lembra a distribuição que é adotada como parâmetro no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), onde a média é de seis processos por técnico, quando o assunto é licenciamento ambiental. Na Funai, o padrão deveria ser de 30 por técnico.
O relato dos servidores, no entanto, evidencia a carência de recursos humanos e, indo além nas análises, revela a falta de medidas que possam diminuir a rotatividade dos servidores e um cenário de desmotivação e adoecimento mental.
evasão do servidor
Outro órgão que interpretou dessa forma a situação da Funai foi o Tribunal de Contas da União (TCU), conforme mencionam os funcionários no relatório. O TCU apontou, após a conclusão da auditoria, pontos como a evasão de servidores, a falta de incentivo para que se qualifiquem na área indígena e permaneçam em locais com adversidades, inclusive arriscando a vida, em função da tensão em torno da território, a falta de reposição de pessoal e os baixos salários. O Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos também entendeu da mesma forma, diagnosticando o que chamou de “epidemia de frustração” entre os servidores da Funai. Em geral, a classificação também passa por “enfraquecimento crônico” do órgão, na avaliação do TCU.
“Esperamos muito uma mudança no discurso oficial do Estado em relação aos povos indígenas. A gente acha superimportante ter, dentro do Executivo Federal, um ministério específico, ter todo o governo federal dando ênfase à questão indígena, mas isso tem que vir acompanhado de questões práticas. Não tem como dizer que vamos retomar a política de demarcação de terras indígenas se, na coordenação responsável, temos 12 pessoas para dar conta desse universo”, diz Mônica, que ocupa o cargo de especialista indigenista da Funai desde 2010.
“São pessoas sobrecarregadas e o trabalho é muito complexo. É um trabalho de grande responsabilidade, não só por garantir os direitos consagrados na Constituição Federal aos povos indígenas, na estrutura fundiária em que se inserem as terras indígenas, mas também porque anula os títulos particulares que afetam as áreas delimitadas. Ou seja, gera um potencial muito alto de conflitos. Isso é muito sério”, acrescenta.
A associação Indigenistas Associados (INA), de funcionários da Funai, também tem pressionado o governo a se comprometer com a valorização da categoria. Em junho de 2022, a entidade lançou uma carta proposta aos candidatos eleitorais, especialmente os presidenciais, com foco na causa indígena. A associação considera a capacitação dos funcionários e a formulação de um plano de carreira como caminhos para o fortalecimento institucional da fundação.
Indígenas em isolamento voluntário
Uma das principais preocupações da Funai, segundo Mônica, são os indígenas em isolamento voluntário. Hoje, o contexto é de desolação e vulnerabilidade, já que cada um dos 79 funcionários da Funai que atuam nessa área é responsável por cuidar de um perímetro de 978.381,92 hectares. Um hectare equivale à área de um campo oficial de futebol, aproximadamente.
No auge da pandemia de covid-19, o Supremo Tribunal Federal liberou a contratação emergencial de trabalhadores indígenas para permanecer nos territórios onde vivem povos em isolamento voluntário para protegê-los. A admissão de indígenas como servidores públicos é uma das práticas que a Funai vem incorporando há algum tempo e que pode ajudar a solucionar os gargalos que ela enfrenta.
Conforme citado por Mônica, porém, trata-se de algo mais específico e uma forma de contrato temporário. “O que defendemos hoje é que sejam criados mecanismos na legislação para absorver os trabalhadores indígenas como efetivos e não como temporários, terceirizados, o que deixa sua condição de trabalho, em relação aos trabalhadores não indígenas, em situação de inferioridade , sem estabilidade, sem direitos”, diz.
A Agência Brasil pediu um posicionamento da Funai, mas não obteve resposta.